segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Feliz Aniversário

Ontem foi aniversário da minha avó. Noventa e seis anos de vida, dos quais seis ela passou presa à cama ou a uma cadeira de rodas. Está muito diferente daquela Vó Geralda da minha infância. O nariz, outrora bastante proeminente, quebrou-se a alguns anos num ímpeto de levantar-se da cadeira de rodas e firmar-se nas pernas que já não forneciam sustentação ao seu corpo. Hoje em dia, é um nariz menor e torto, marcado pela sonda amarela que adentra a narina esquerda. Por aquele tubinho minha avó toma as suas refeições. A boca agora mantém-se aberta como um grande túnel róseo, incapaz de emitir palavras, apenas sons guturais. Mas os olhos.... Apenas através daqueles pequenos olhos negros e brilhantes reconhecemos a implacável idosa que ali se encontra.
A marca registrada da minha avó sempre foi a austeridade. Uma senhora que se tornou viúva com cerca de quinqüenta anos e onze filhos para criar. Trabalhava dia e noite para bem criá-los; aprendeu a ser forte, dura como um tronco de carvalho - e desaprendeu o afeto e a ternura. Era uma avó ranzinza e muito séria, inclinada a dar lições de moral, com o semblante invariavelmente carregado.
Mas era, de fato, uma mulher surpreendente. Bebia cerveja como um homem, era fanática por futebol. O fato de ser independente e animada rendeu-lhe a pecha de "pra frente".... Dizem até que possuia uma pequena pistola e um soco inglês... Mas não posso afirmar com certeza - nunca tive uma conversa intensa com ela. Minha avó era do tipo bem reservado e que não perdia muito tempo proseando com crianças.
Exercia sobre os netos aquele fascínio que só as pessoas severas conseguem: conquistá-la era um desafio e provocá-la tornou-se uma diversão. Até mesmo porque não era difícil aborrecê-la: a casa, embora muito humilde, era um templo da limpeza e da perfeita arrumação, e o simples fato de estarmos dentro dela parecia preocupar minha avó.
Ontem, ali estava ela. A cadeira posicionada dentre a roda de filhos e amigos presentes (dos onze filhos, apenas cinco estavam ali; dos setenta netos, apenas oito) para que rezássemos o terço. Que outro presente poderíamos lhe oferecer? A disposição dos móveis é totalmente diversa daquela do tempo em que era senhora da casa; agora, fica por conta das enfermeiras o comando do lar. De camisola, imersa no som lúgubre que têm as orações destinadas aos doentes, os olhos da minha avó faiscavam. Pensei imediatamente no conto "Feliz Aniversário", encontrado em "Laços de Família", de Clarice Lispector.
Se pudesse, Vó Geralda levantaria e cuspiria no bolo. Aniversário sem filhos, sem netos, sem música e sem cerveja. Vestida por outras pessoas, com uma camisola cheia de babados - ela, que só usava sóbrios vestidos de chita. A casa arrumada por "estranhas", em nada lembra aquele "santuário" de outrora. Presa a uma cadeira de rodas, amarrada para não cair - Vó Geralda estava sempre andando, mexendo, catando copos, lavando pratos...
Sim, ela cuspiria no bolo. Mas não tem forças para isso. Nem para isso.
Manifestou sua indignação da única maneira que podia: pelos olhinhos negros, flamejantes, enquanto numa tentativa aflita de falar, gemia alto e sofregamente. Vovó ainda não desistiui de viver do seu jeito; ainda não desistiu de si mesma.